domingo, 15 de maio de 2011

Cicatriz

As marcas no rosto têm um quê de eterno mais eterno que marcas de outras partes do corpo. Ele nunca gostou que o fitassem – Desconfiado ou desacostumado, não importa. Eu o desejava em cada parte do seu corpo; desejava-o em cada mão estendida que se converte em toque; desejava-o nos lábios que se transformam em deslizar vagaroso. Quando se ama alguém quer-se absorver uma gota qualquer de suor, de gozo, de intensidade. Tocar-se como que pelas mãos dele. Usar todos aqueles possessivos almejados pelos amantes: meu, tua, nosso. Absorver até mesmo a falta de palavras e tipos de palavras.

Ele gostava mesmo era daquela camisola verde, daquele cheiro de sabonete de lavanda, daquele meu olhar perdido. Fitava-o para conhecer a história daquele rosto – não a história que se conta, mas a história que se sente. Quando se ama quer-se estar sob a pele, preencher as lacunas formadas pelo tempo e guardá-las para quando estiver longe, ainda tê-las nítidas e brilhantes. Ver aquele rosto acordando inchado e sorrindo com pequenos olhos negros e bocejos em lábios bem desenhados era remontar anseios prévios e saber que o meu tornara-se possível. Minhas cicatrizes são invisíveis e criadas em um fino traço pálido nas noites.

O amor é por vezes um tipo insolúvel de problema, seja por não conseguir diluir, seja por não querer. Se há alguma coisa inerente ao querer amor, é querer profundidades até então intocadas. Não, não acredito nas narrativas de amor sem essa coleção de tragédias que é a vida. Não acredito em amores cristalinos e cristalizados. Amor é sangue que escorre sem se ver. É ferida que dói e se sente. É descontentamento descontente. É redundante. São feridas assim que consigo aliviar quanto te observo enquanto você sente-se incomodado com isso. Nós seus, nós meus, nós nossos.

Amar não é a cura. Meu corpo continua sendo templo da minha desordem com as tatuagens das tuas mãos no meu peito, com o teu homem vetrusiano me seguindo às costas sorrateiramente desnorteando meu norte. Eu sabia que era só amar você pra começar a beber e engordar, pra querer mudar até a quantidade dos meus batimentos cardíacos. Mudei até religião; virei infiel e não confesso mais meus pecados porque, mais do que nunca, acho que o inferno pode ser um bom lugar. Afinal, quando você desabotoa meu vestido, só posso concluir que, em vida, estou perdidamente salva.