sábado, 8 de novembro de 2008

O último

”Vou-lhes contar um segredo: a vida é mortal. Nós mantemos esse segredo em mutismo cada um diante de si mesmo porque convém, senão seria tornar cada instante mortal.”¹

Para Zeca, meu titio carequinha.


Estou na última página de mais um romance que chega a seu fim. Parece estranho que esta vida tenha que terminar após tantos anos de trabalho árduo para construí-la. E o mais estranho ainda é continuar lutando por ela, tal qual gladiador que enfrenta a fera muito mais forte que ele. Acabou. E o que fica para quem ficou? Talvez a certeza de um pacto de carinho feito outrora. Talvez o entardecer de vários domingos. Talvez o cheiro do cabelo. Talvez o tom de uma voz grave. Talvez uma parte da vida.

O último a me chamar de menina calou-se eternamente. Junto com ele, a menina também emudeceu. Agora a mulher guarda as lembranças de seu andar prejudicado por um desses acidentes que acontecem ao caminharmos em alguma estrada desta vida. Suas mãos não tinham muita força para segurar as minhas, mas eram suficientemente calorosas para me abraçar. A mulher continua a procurar-se por tais estradas que deixastes para trás e guarda todos aqueles abraços que foram reservados a ti.

Deixastes muitos órfãos; irmão, principalmente. Contudo, há certas alegrias que não morrem jamais. E é na perda que até os xingamentos são esquecidos. Se o tempo é ou não justo conosco, eu não sei. Acho que nós mesmos comentemos as maiores injustiças contra nós e contra o tempo. Não importa, Julho ainda é teu. Desejar-te-ei felicidades todos os anos, não em aniversários, sempre soube que não era uma aficionada por calendários, mas felicitações por tudo que construístes. Caso contrário não haveria lágrimas neste dia; tanto que hoje o sol nem nos sorriu.

¹Clarice Lispector in “Tempestade de almas”

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Claras incertezas



Não estava bem; não estava definitivamente bem. É com esta afirmação que tentarei tecer uma história ininteligível e indefinível.


Ela queria, não, para dizer a verdade, ela não queria. Parece que o não-querer havia se tornado parte de algo que não saberia explicar, pois era maior que todos os desejos guardados lá dentro. Dentro do ônibus, fones de ouvido, olhava as pessoas lá fora, mas não fazia análise alguma. A música a dominava, embalando o pseudo equilíbrio de seus sentimentos. Não era uma questão de encarar, mas de deduzir. Clara deduzira que havia chegado a um ponto ainda não ideal, mas suficientemente firme para não mais tropeçar nos paralelepípedos desta rua que a acompanhara desde sempre.

Esta rua larga, sem calçadas, não lhe dava nenhuma opção de desvios. Contudo, quando em vez, um estranho de olhos castanhos tão familiares, desviava-lhe o caminho. E ela ia. Ia porque a música alta evitava que Clara ouvisse o próprio grito desesperado do não. Sapatos elegantes calçavam-lhe os pés cansados e cambiantes. O batom vermelho denotava todos os desejos presos, como um grito mudo, em sua garganta. Ia porque gostava de caminhar. Então Clara caminhava doce e desesperadamente como um filho procurando o pai desconhecido.

Olhos cor de mar. Por vezes ela sentia-se parte dele, parte daquela imensidão sem dono, sem mundo, sem fundo ou tão profundo que era impossível alcançar-lhe o fundo. Clara sempre achou que o mar era triste. Deve ter sido por isso que Deus lhe deu olhos da exata cor do mar. O mar era triste? Sim. Era triste, pois para tal imensidão, não houvera gente apta a lhe render descobertas e, aqueles que nunca quiseram tentar, despejavam seus restos mortais. O mar carrega um peso incomensurável, assim dizia Clara.

Sempre gostou de ler. Ninguém nunca entendeu isso porque a leitura nunca lhe foi apresentada. Clara havia descoberto tal doce sabor sozinha. E era justamente sozinha que gostava de ficar enquanto lia. Sentava no chão, atrás da porta, ligava uma luminária e lia. Por vezes adormecia por lá mesmo. No dia seguinte Clara não sentia nenhum tipo de dor física, pois as doces palavras de seus autores favoritos serviam-lhe de analgésico. Acordava, só não sabia se estava pronta para mais um novo dia, mas acordava.

A verdade é que Clara tinha medo, muito medo.

Passou toda a vida tendo muito pouco. Mesmo que junto, estava separada. Vivia épocas diferentes durante a década de 80. Era romântica em seu interior. Contudo, com o passar dos anos, não se permitia mais divagar; tentava fazer de seus sonhos os mais objetivos possíveis. Daí começou a acreditar na velha sabedoria popular de que a cruz nunca é mais pesada que o limite pessoal do suportável. Por isso era exagerada. Sentia a dor e o amor, alegria e tristeza transbordando seus extremos. Transbordando como maré em dias de tempestade.

E nesses transbordamentos latentes, cada dia a mais, cada vez menos aquele reflexo no espelho parecia-lhe familiar. Mas, como enxergar-se quando o grande mal é uma cegueira negra sem precedentes? A verdade é que Clara tinha medo, muito medo e se tateava em meio as suas coisas e causas perdidas.

E foi em uma dessas noites sujas e nojentamente frias que Clara deparou-se na beira da praia. Os comprimidos já sem efeito ficaram jogados no tapete do quarto, um casaco preto e longo e um reflexo conhecido na imensidão verde.

Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permita que agora emudeça
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio,
e a dor é de origem divina.

Permita que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.¹

Se é nas origens onde as grandes verdades habitam, Clara conhecia todas agora. Se a solução dos problemas é apaixonar-se por si próprio, Clara esclarecera qualquer sombra de dúvida sobre todos os aspectos, pois, tal qual Narciso, lançou-se rumo a si mesma. A imensidão verde do olhar de Clara nunca pareceu tão serena, pois fechados, não procuravam mais nada.

Se Clara encontrou as respostas? Bem, a única certeza possível é a dúvida.

¹Serenata (Cecília Meireles)

domingo, 2 de novembro de 2008

Ao amor de uma noite qualquer...



Do amoroso esquecimento

Eu agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti…
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?¹



Haveria tanta coisa que eu queria te dizer: tantas declarações idealizadas por este meu amor sem nexo, sem sexo; tantas carícias de um amor renascido no tempo me fogem às mãos em total desordem cronológica. Esta não-lógica do que você é desafia o meu antes íntegro, inteiro intelecto. Esta não-ordem que me causa tua lembrança me faz feliz em meio ao caos de tua ausência. Remoer passados parece fazer parte de mim. Não consegui preparar teu velório, nem divulgá-lo. Então, mais uma vez, a certidão de nascimento desta loucura torna-se válida sem prazo de término.

Tal qual sommelier, bebo-te em goles lentos e degusto teus sabores em cada líquido que venha saciar minha sede. Busco-te em minhas letras tortas e em meus livros suicidas como remédio incontestável, infindável, atemporal. Acho que você tornou-se minha esperança. Agora eu sinto, pois, outrora, eu era dormente. Você é quem me invade as entranhas e me preenche, me seduz sem nem ao menos estar por perto. Daí eu te procuro, te escavo e te encontro aqui dentro, te ressuscito. Como uma relíquia, acalento este amor cuidadosamente em meus braços e rapidamente nos tornamos um.

Não sei mais quem sou; não sei mais quem sou se não me arrepiar, se não mais te encontrar. Necessito do nosso encontro, pois, assim como a lua parece descer e transbordar-se pelo mar, quero me afogar docemente em você. E se eu te dissesse neste momento que eu te amo, o que colheria de seus olhos? Brilho? Desesperança? Não sei. Não sei. O não saber dói. O não saber escraviza. O não saber mata a alma.

Releio-te em meus cadernos e passo a ter certeza que tenho te amado desde aquela data que nem sequer me recordo mais. Um dia que fugiu ao tempo não por não ser pouco importante, mas por ser tão especial e lindo que os calendários tornaram-se insuficientes para marcá-lo. O amor não é um trem que possui hora e local exatos para chegar e partir. O amor é um trem arrebatador que nos puxa para o seu interior e não nos deixa saber quando e onde parar. Agora sou passageira de um trem batizado com seu nome e sobrenomes. Acolhe-me; não me deixe mais sair. Peço-te: dá-me tua passagem só de ida ou, se preferir, volta comigo.

¹Mário Quintana In "Espelho Mágico"