sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Claras incertezas



Não estava bem; não estava definitivamente bem. É com esta afirmação que tentarei tecer uma história ininteligível e indefinível.


Ela queria, não, para dizer a verdade, ela não queria. Parece que o não-querer havia se tornado parte de algo que não saberia explicar, pois era maior que todos os desejos guardados lá dentro. Dentro do ônibus, fones de ouvido, olhava as pessoas lá fora, mas não fazia análise alguma. A música a dominava, embalando o pseudo equilíbrio de seus sentimentos. Não era uma questão de encarar, mas de deduzir. Clara deduzira que havia chegado a um ponto ainda não ideal, mas suficientemente firme para não mais tropeçar nos paralelepípedos desta rua que a acompanhara desde sempre.

Esta rua larga, sem calçadas, não lhe dava nenhuma opção de desvios. Contudo, quando em vez, um estranho de olhos castanhos tão familiares, desviava-lhe o caminho. E ela ia. Ia porque a música alta evitava que Clara ouvisse o próprio grito desesperado do não. Sapatos elegantes calçavam-lhe os pés cansados e cambiantes. O batom vermelho denotava todos os desejos presos, como um grito mudo, em sua garganta. Ia porque gostava de caminhar. Então Clara caminhava doce e desesperadamente como um filho procurando o pai desconhecido.

Olhos cor de mar. Por vezes ela sentia-se parte dele, parte daquela imensidão sem dono, sem mundo, sem fundo ou tão profundo que era impossível alcançar-lhe o fundo. Clara sempre achou que o mar era triste. Deve ter sido por isso que Deus lhe deu olhos da exata cor do mar. O mar era triste? Sim. Era triste, pois para tal imensidão, não houvera gente apta a lhe render descobertas e, aqueles que nunca quiseram tentar, despejavam seus restos mortais. O mar carrega um peso incomensurável, assim dizia Clara.

Sempre gostou de ler. Ninguém nunca entendeu isso porque a leitura nunca lhe foi apresentada. Clara havia descoberto tal doce sabor sozinha. E era justamente sozinha que gostava de ficar enquanto lia. Sentava no chão, atrás da porta, ligava uma luminária e lia. Por vezes adormecia por lá mesmo. No dia seguinte Clara não sentia nenhum tipo de dor física, pois as doces palavras de seus autores favoritos serviam-lhe de analgésico. Acordava, só não sabia se estava pronta para mais um novo dia, mas acordava.

A verdade é que Clara tinha medo, muito medo.

Passou toda a vida tendo muito pouco. Mesmo que junto, estava separada. Vivia épocas diferentes durante a década de 80. Era romântica em seu interior. Contudo, com o passar dos anos, não se permitia mais divagar; tentava fazer de seus sonhos os mais objetivos possíveis. Daí começou a acreditar na velha sabedoria popular de que a cruz nunca é mais pesada que o limite pessoal do suportável. Por isso era exagerada. Sentia a dor e o amor, alegria e tristeza transbordando seus extremos. Transbordando como maré em dias de tempestade.

E nesses transbordamentos latentes, cada dia a mais, cada vez menos aquele reflexo no espelho parecia-lhe familiar. Mas, como enxergar-se quando o grande mal é uma cegueira negra sem precedentes? A verdade é que Clara tinha medo, muito medo e se tateava em meio as suas coisas e causas perdidas.

E foi em uma dessas noites sujas e nojentamente frias que Clara deparou-se na beira da praia. Os comprimidos já sem efeito ficaram jogados no tapete do quarto, um casaco preto e longo e um reflexo conhecido na imensidão verde.

Permita que eu feche os meus olhos,
pois é muito longe e tão tarde!
Pensei que era apenas demora,
e cantando pus-me a esperar-te.

Permita que agora emudeça
que me conforme em ser sozinha.
Há uma doce luz no silêncio,
e a dor é de origem divina.

Permita que eu volte o meu rosto
para um céu maior que este mundo
e aprenda a ser dócil no sonho
como as estrelas no seu rumo.¹

Se é nas origens onde as grandes verdades habitam, Clara conhecia todas agora. Se a solução dos problemas é apaixonar-se por si próprio, Clara esclarecera qualquer sombra de dúvida sobre todos os aspectos, pois, tal qual Narciso, lançou-se rumo a si mesma. A imensidão verde do olhar de Clara nunca pareceu tão serena, pois fechados, não procuravam mais nada.

Se Clara encontrou as respostas? Bem, a única certeza possível é a dúvida.

¹Serenata (Cecília Meireles)

Um comentário:

oconselheiro disse...

Q posso dizer? Intenso.Palavras ricas carregadas de imagens, sons, sabores, desejos. Essas palavras escolhidas a dedo e alma dizem muito.