domingo, 25 de maio de 2008

Consumação

Havia tempo que ela não ia à praia. Até porque aquilo tudo lhe parecia uma perda de tempo. Ficar parada enquanto o sol a deixa tão vermelha quanto uma daquelas maçãs grandes? Não, não fazia sentido, definitivamente. De uma coisa ela tinha certeza: uma maçã bem vermelhinha era bem atrativa, mas ela não... Não mesmo. E à noite? Se durante o dia cogitar a idéia da ir à praia era praticamente impossível, ir durante noite então parecia um desparate ainda maior. Contudo, naquele dia tudo se tornara diferente. Não se sabe se os olhos estavam escandalosamente mais bonitos ou se era a flor que ela colocou entre os seios ou se o vento traiçoeiro denunciara a leve transparência de seu vestido longo. Ela sempre prendia o cabelo, mas naquele dia não... Naquele dia tudo se tornara diferente, por isso deixou-os livres. Livres como ela almejara tanto ser.

Não queria andar na areia. Não queria se sujar. Não queria que aqueles grãos irritantes grudassem em sua pele. Nunca vira tamanha teimosia como a de um grão de areia; eles não somem nunca. Portanto, decidiu caminhar pelo calçadão mesmo. Preto e branco, branco e preto. Preto e branco eram as cores das pastilhas do calçadão, da camisa do time preferido e da maioria das roupas que ela possuía. Preto e branco eram as cores mais honestas que ela conhecia. Seu vestido era alvo em contraponto ao seu coração, este as dores transformaram em uma cor que não se conhece. Os cabelos dela eram negros. A noite estava negra; tão negra como os cabelos dela e tão cristalinamente negra quanto os olhos dele.

Caminhava no calçadão e achava estranho a praia estar deserta. Achava estranho também a quantidade de postes que havia por lá. Na cabeça dela aquela imensidão toda só podia ter uma única fonte de luz: as estrelas. Mas naquela noite não havia nem luar, nem estrelas e os postes só serviam mesmo para tentar afugentar um pouco a violência; total fracasso social. Agora andava. Tinha medo. Medo da escuridão. Medo da chuva, pois esta molharia seu vestido branco e deixaria transparecer aquilo que há tanto escondia.

Andava, quase corria. A flor caira. Não mais exalava aquele doce perfume sob suas narinas. E neste alvoroço de êxtase e medo, uma voz a chamou. Não, não pararia mesmo, de forma alguma... Continuou correndo. Até que uma mão a tocou bem no ombro. Uma mão cuja suavidade e temperatura pareciam quebrar o gelo do vento e do medo. Olhou para trás com um receio só sentido antes por aquele amor platônico da adolescência. Olhou. E tamanha foi a surpresa que ficara sem fôlego. Eram os olhos negros. Aqueles mesmos, os únicos dos quais ela se lembrava. Havia muito tempo que aqueles olhos não se encontravam. Cumprimentaram-se. Falaram um pouco da atual situação moral-emocional de cada um, ou seja, aquele tão famoso “Vou bem, obrigada. E você?” . Tudo e todos estavam tão bem, todos e tudo estavam tão em ordem que chegava a ser frívolo. Coisas de uma moral cristã, porém fria, que já estavam cansados de apregoar. Contudo, continuavam naquela conversa que falava tanto, mas não dizia nada. Depois de um tempo, convenceram-se em retirar os calçados e caminhar na areia.

A distância entre a estrutura do calçadão e a areia era grande. E só ela sabe o quão feliz ficara ao encontrar as mãos dele oferecendo uma ajuda quase que medieval. Em uma mão, as mãos dela. Na outra mão aquela flor vermelha que há tempo caira de entre os seios dela. Foi mais que um encontro de mãos e perfumes, mas um encontro de olhares. Olharam-se. Enxergaram-se. A eventual transparência de vestido dela nem importava mais. Ela se sentira nua desde que os olhos negros dele encontraram os dela. Magia. Conteram-se. Continuaram a conversar sobre o supérfluo. Sentaram na areia fria e logo o supérfluo levou às lembranças. Estas não podiam ser frias; não eram frias, definitivamente.

Olharam-se com a sede daqueles que desejam saciar-se através da alma alheia. O cabelo dela ao vento. A flor ainda na mão dele. E ele em um ato que não se sabe se era desejo ou honestidade, na verdade era os dois, desejo dela sendo honesto com ele mesmo, devolveu a flor ao seu lugar de origem. E as mãos dele antes ocupadas, se ocupavam agora em tocar o colo e ajeitar os lindos, negros e bagunçados cabelos dela. Beijaram-se vagarosamente como se estivessem saboreando cada milímetro um dos lábios do outro. Abraçaram-se tão apertado que a respiração parecia cessar. Os corpos estavam cheios de areia. Mas aqueles grãos antes tão teimosos e irritantes nunca pareceram tão doces e suaves ao paladar como naquela noite. Estava frio. Contudo eles tinham o calor dos corpos um do outro e o céu como cobertor. Queriam-se, indubitavelmente. E era um querer incomensuravelmente teimoso, tanto quanto os grãos de areia, que não se render seria assassiná-lo com requintes de crueldade. Não matarás. Visivelmente aquilo tudo nada tinha a ver com a Bíblia ou qualquer outro sacramento. Não, naquele momento eles se alimentavam da mistura das carnes um do outro; um sacramento totalmente mundano, mas tão delicioso quanto o néctar mais sagrado do deserto e não saboreá-lo constituiria em pecado de morte para ambos. Sim, areia, corpos, céu, desejo... Essas eram as únicas regras, a única oração. E todos aqueles postes de luz no calçadão nunca lhes pareceu tão inconvenientes.

2 comentários:

Hudson Pereira disse...

Vanessa! Que texto,um filme para a mente - cinema de ler.Pud assistir todas as cenas da narradora,cenas cariocas - minhas favoritas.
Parabéns!
Mil beijos!

Raissa Siqueira disse...

Prof muito bom esse texto amei!!!!!!
Vc escreve muitoooo bem msm...
Vou preparar pipoca para ler o próximo, pq os seus textos são melhores do que filme!!!