quarta-feira, 2 de julho de 2008

Ela, as janelas e Ele

“E ninguém é eu, e ninguém é você. Esta é a solidão. ”¹

Nem sabia por quê escrevia. Havia escrito tanta coisa e nem se importava com elas, pois não mais havia um alguém para dedicá-las. Sentia que tudo era em vão. As flores não floresciam com as mesmas cores brilhantes de antes. As folhas avermelhadas e grandalhonas não mais serviam como marca-página do livro favorito. Ler; não lia mais. Não mais pegava sol, nem sentia a brisa.

Sentada ali, magrinha como uma menina, passava dias inteiros. Ninguém entendia. Aliás, ninguém nunca entendeu. Encontrou naquilo sua fuga: na neutralidade. Escrever era seu purgatório uma vez que o céu nunca conhecera e não queria voltar ao inferno.

Escrevia.

As grandes janelas sempre ficavam abertas, pois assim podia assistir o mundo. Aquele mundo todo de gente apressada pra lá e pra cá. Observava uma obra de arte e seus autores em movimento. Os olhos grandes e castanhos pareciam estar constantemente assustados. Ouvia um barulho e tremia, gelava. Era então que a caneta parecia ganhar vida e compor sinfonias inteiras naquele caderno sofrido. Passavam-se horas. Vivia. Respirava. Aqueles minutos eram como oxigênio para alguém ofegante.

Ofegava, escrevia e com os olhos encharcados observava a moldura viva bem em frente. Escrevia. Não chegou. Não chegava nunca. Não voltava nunca. O amor não ia embora nunca. Nenhum daqueles barulhos era o barulho dele.

A estação com raios de ouro ultrajantes chegava para depois as grandes folhas espalharem-se nas ruas deixando os frutos à mostra. Os ventos cortantes cediam lugar à sedução dos perfumes florais com seus coloridos. Ela observava, chorava. Nenhum daqueles barulhos era o dele.

Silêncio.

Observava. Dispersa a vida passava como aquelas pessoas na rua, contrapondo-se ao ideal, ao real, ao visceral e ela, sentada, observava e escrevia. Contudo, com o passar das horas e dos passos, cada palavra naquele caderno tornara-se mais e mais incoerente. Mal sabia que a vida é feita de passos construídos pelos segundos e não andar era suicídio.

Observava e escrevia e nada mudava e o amor não voltava. Assim, cada dia era uma pequena morte e ficava cada minuto mais longe de si mesma e daqueles barulhos que nunca eram os dele.

¹Clarice Lispector In: "A descoberta do mundo"

Um comentário:

Hudson Pereira disse...

Ter Clarice como epígrafe é uma grande responsabilidade que vc cumpre com muita propriedade.
Queria escrever prosa assim!
parabéns!

beijos!