“É como se a gente não soubesse pra que lado foi a vida, por que tanta solidão. E não é a dor que me entristece, é não ter uma saída, nem medida da paixão...” ¹
Decidi arrumar a casa. Decidi não mais tropeçar em você, nem escorregar no piso liso da tua pele ou ver-te nos quadros pintados a óleo.
Comecei pela sala. Lá encontrei aquele DVD que compramos em um domingo desses e nunca tivemos tempo de assistir. O quarto ainda exalava o cheiro vindo da camisa social que você usou na nossa última vez. Sabia que seria uma faxina difícil; e era indubitavelmente. Senti fome; fome de mim, de comida, de você. Água no fogo. 100°. O café desta vez não era nosso. Usei sua xícara com pouco açúcar.
A caixa que separei para guardar as lembranças já estava cheia. Onde guardar? Não podia deixá-la embaixo da cama; era grande demais. Era grande demais para mim e sua simples existência já era por si só claustrofóbica.
Se era faxina, que fosse de verdade. Tomei banho. Um banho bem diferente dos usuais; um banho rápido e simples. Sem muita espuma, nem importantes fragrâncias. Coloquei uma blusa branca qualquer só porque você não gostava de branco. Não quero nada mais disso tudo que restou; não quero mais nada daquilo que não construímos. Não quero mais suas esperanças e seus eu te amos que dão voltas nas vinte e quatro horas do dia e chegam a lugar algum. Não, nunca, jamais e todos os advérbios de negação possíveis em todas as línguas que você fala. Queria lavar minha alma de você.
Que vá, que vá para longe e não dê mais notícias. Não quero saber das mulheres que entram em seu carro nem de seus passeios. E daí que sob sua ótica o céu de Londres estava lindo? Não. Esta é a única resposta da qual tento me convencer no momento. Tomara que em seus longínquos caminhos você não precise olhar para trás. Todavia, se precisar, espero que o dia esteja nublado, tão foggy quanto as manhãs londrinas. Quero uma cortina de fumaça entre nós.
Guardei tudo em uma caixa: seu discurso, o Big Ben, o Bentinho, a Capitu, El Libro de las Preguntas, as fotos de paisagem, suas mesóclises e ênclises e seu francês fajuto. Pedaço por pedaço, queria te desovar naquela caixa; acho que consegui. Saí apressada e cansada; tudo estava bastante pesado. Pesado meu corpo que carregava a caixa. Pesada a caixa que levava minha alma.
Parei na ponte de uma praia qualquer. Em frente brilhava aquela imensidão poluída de um mar outrora cristalino. E logo atrás havia todas aquelas buzinas, propagandas políticas e a gente que muito via e pouco enxergava, apressava-se neste vai-e-vem tão complexamente simples. Embaixo da ponte, pescadores limpavam o peixe recém pescado que estaria bem cedo no mercado municipal. Será que eles são felizes, indaguei. Não sei. Mas quem é feliz? Acho que ninguém, respondi. A retórica é minha perdição. Perdi o foco. Voltei. Voltei ao nosso enterro de ossos, ao enterro do esqueleto deste amor caduco. Prometi a mim mesma que jogaria tudo fora; tudo bem amarrado ali dentro.
Vivo me fazendo promessas vãs e mais uma vez não consegui. Desfiz o nó e refiz aquele lá na garganta. Peguei nossa foto, a foto mais bonita, a que tiramos em Vancouver no nosso último verão juntos. Admirei teus olhos grandes e negros que, às vezes, não parecia combinar com tua pele clara. Contudo, eram eles os que eu jamais quis ter que esquecer. Quebrei mais uma promessa, a de não chorar mais. E duas pequenas lágrimas rolaram do canto do meu olho direito. Deixei que o vento as enxugasse. Afinal, venta muito na primavera.
Um pescador, um senhor de idade, me observara sob a ponte. Preocupou-se e em um gesto nobre veio perguntar se estava me sentindo bem. Sim. Claro, respondi. Ele olhou-me profundamente e disse: “As feridas da alma são assim mesmo, menina. Demoram.” Sorriu e saiu. Ele tinha razão, mas por hoje é só; estou só.
Havia levado um frasco de uma substância inflamável qualquer, mas desisti de atear fogo na caixa. Lembrei das histórias sobre garrafas que eram jogadas ao mar com uma mensagem de amor dentro. Decidi jogar a caixa com tudo, com o nó cego no mar. Pensei que, talvez, algum poeta grego pudesse encontrá-la e decidir escrever uma ode. Ou que servisse de fôlego para uma declaração de amor mar afora. Ou fizesse um marinheiro lembrar de sua esposa e filhos que o aguardam ansiosamente no lar. Achei que, jogando a caixa, poderia ajudar alguém; poderia ajudar um amor como não pude ajudar o meu. Parece que quando o amor não é mais recíproco, deixa de ser egoísta e torna-se altruísta. Ah, sei lá, deve ser mais uma das minhas teorias malucas que surgem de uma epifânia e se vão junto ao vento.
Joguei. As lágrimas ainda não haviam secado. Levei um tempo admirando nossa vida agora náufraga. Virei às costas com a conclusão de que somos todos tolos. Afoguei a matéria, mas a alma continua viva, à deriva.
¹Música: A medida da paixão. (Lenine e Edu Lobo)
Decidi arrumar a casa. Decidi não mais tropeçar em você, nem escorregar no piso liso da tua pele ou ver-te nos quadros pintados a óleo.
Comecei pela sala. Lá encontrei aquele DVD que compramos em um domingo desses e nunca tivemos tempo de assistir. O quarto ainda exalava o cheiro vindo da camisa social que você usou na nossa última vez. Sabia que seria uma faxina difícil; e era indubitavelmente. Senti fome; fome de mim, de comida, de você. Água no fogo. 100°. O café desta vez não era nosso. Usei sua xícara com pouco açúcar.
A caixa que separei para guardar as lembranças já estava cheia. Onde guardar? Não podia deixá-la embaixo da cama; era grande demais. Era grande demais para mim e sua simples existência já era por si só claustrofóbica.
Se era faxina, que fosse de verdade. Tomei banho. Um banho bem diferente dos usuais; um banho rápido e simples. Sem muita espuma, nem importantes fragrâncias. Coloquei uma blusa branca qualquer só porque você não gostava de branco. Não quero nada mais disso tudo que restou; não quero mais nada daquilo que não construímos. Não quero mais suas esperanças e seus eu te amos que dão voltas nas vinte e quatro horas do dia e chegam a lugar algum. Não, nunca, jamais e todos os advérbios de negação possíveis em todas as línguas que você fala. Queria lavar minha alma de você.
Que vá, que vá para longe e não dê mais notícias. Não quero saber das mulheres que entram em seu carro nem de seus passeios. E daí que sob sua ótica o céu de Londres estava lindo? Não. Esta é a única resposta da qual tento me convencer no momento. Tomara que em seus longínquos caminhos você não precise olhar para trás. Todavia, se precisar, espero que o dia esteja nublado, tão foggy quanto as manhãs londrinas. Quero uma cortina de fumaça entre nós.
Guardei tudo em uma caixa: seu discurso, o Big Ben, o Bentinho, a Capitu, El Libro de las Preguntas, as fotos de paisagem, suas mesóclises e ênclises e seu francês fajuto. Pedaço por pedaço, queria te desovar naquela caixa; acho que consegui. Saí apressada e cansada; tudo estava bastante pesado. Pesado meu corpo que carregava a caixa. Pesada a caixa que levava minha alma.
Parei na ponte de uma praia qualquer. Em frente brilhava aquela imensidão poluída de um mar outrora cristalino. E logo atrás havia todas aquelas buzinas, propagandas políticas e a gente que muito via e pouco enxergava, apressava-se neste vai-e-vem tão complexamente simples. Embaixo da ponte, pescadores limpavam o peixe recém pescado que estaria bem cedo no mercado municipal. Será que eles são felizes, indaguei. Não sei. Mas quem é feliz? Acho que ninguém, respondi. A retórica é minha perdição. Perdi o foco. Voltei. Voltei ao nosso enterro de ossos, ao enterro do esqueleto deste amor caduco. Prometi a mim mesma que jogaria tudo fora; tudo bem amarrado ali dentro.
Vivo me fazendo promessas vãs e mais uma vez não consegui. Desfiz o nó e refiz aquele lá na garganta. Peguei nossa foto, a foto mais bonita, a que tiramos em Vancouver no nosso último verão juntos. Admirei teus olhos grandes e negros que, às vezes, não parecia combinar com tua pele clara. Contudo, eram eles os que eu jamais quis ter que esquecer. Quebrei mais uma promessa, a de não chorar mais. E duas pequenas lágrimas rolaram do canto do meu olho direito. Deixei que o vento as enxugasse. Afinal, venta muito na primavera.
Um pescador, um senhor de idade, me observara sob a ponte. Preocupou-se e em um gesto nobre veio perguntar se estava me sentindo bem. Sim. Claro, respondi. Ele olhou-me profundamente e disse: “As feridas da alma são assim mesmo, menina. Demoram.” Sorriu e saiu. Ele tinha razão, mas por hoje é só; estou só.
Havia levado um frasco de uma substância inflamável qualquer, mas desisti de atear fogo na caixa. Lembrei das histórias sobre garrafas que eram jogadas ao mar com uma mensagem de amor dentro. Decidi jogar a caixa com tudo, com o nó cego no mar. Pensei que, talvez, algum poeta grego pudesse encontrá-la e decidir escrever uma ode. Ou que servisse de fôlego para uma declaração de amor mar afora. Ou fizesse um marinheiro lembrar de sua esposa e filhos que o aguardam ansiosamente no lar. Achei que, jogando a caixa, poderia ajudar alguém; poderia ajudar um amor como não pude ajudar o meu. Parece que quando o amor não é mais recíproco, deixa de ser egoísta e torna-se altruísta. Ah, sei lá, deve ser mais uma das minhas teorias malucas que surgem de uma epifânia e se vão junto ao vento.
Joguei. As lágrimas ainda não haviam secado. Levei um tempo admirando nossa vida agora náufraga. Virei às costas com a conclusão de que somos todos tolos. Afoguei a matéria, mas a alma continua viva, à deriva.
¹Música: A medida da paixão. (Lenine e Edu Lobo)
2 comentários:
Bravo!! Bravo!!
Sem dúvida, seu melhor texto, Vanessa!!
Deixou a alma transboradar, ne?!!
E...não se engane, meu bem. O amor nunca é recíproco. Ou melhor, a reciprocidade não existe.
Não proque o sentimento possa não ser correspondido. Mas porque jamais, jamais a intensidade será a mesma.
ficaadica^^
Adorei!!
Parabéns!!
Bjoooooooks
Vanessa, meu Deus.
Ainda escreverei uma prosa tão magnífica.
Essas faxinas na alma são difíceis e necessárias,sempre.
Sabe que levemente me lembrou meu texto "Vesti preto e fui á praia"
por ser esse o tema, limpeza da alma.
Parabéns querida, parabéns mesmo.
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