“Mrs. Dalloway always giving parties to cover the silence.”¹
¹Richard, personagem de Ed Harris no filme “The Hours”.
Onde nascem as borboletas... Este é o lugar onde pretendo me firmar. Como crisálida que procura desesperadamente uma folha onde se fixar. Metamorfose. Metamorfosear-me. Construir-me e desconstruir. Ser imago. Alimentar-me das flores que brotam em meus jardins. E, mesmo não havendo mais nada, colher os frutos abandonados no solo ainda úmido e transformar-lhes em parte minha, parte da vida porque é isso que são na verdade: Flores e Frutos e Metamorfose e Vida.
¹Richard, personagem de Ed Harris no filme “The Hours”.
Eram dez horas da noite daqueles dias ambíguos. Daqueles dias que não fazia nem calor, nem frio. Naqueles dias meu coração não parava, não mais sabia o que sentia. Foi assim que me vi caminhando por uma dessas ruas qualquer e me flagrei, parada, em uma dessas esquinas duvidosas de uma rua que não se sabe o nome. Não sabia nem o meu nome. Contudo, queria esquecer o teu. Teu nome ecoava entre os intervalos quase que agonizantes da minha respiração. Era como se pudesse te ouvir nestes entremeios, sentir tua língua no meu colo e suas mordidas latejando em meus seios.
Lembrei-me de Shakespeare, soneto 116: [Love] is the star to every wandering bark, Whose worth’s unknown, although his height be taken.
Olho para o céu. Procuro nossa estrela. Não, não eram estrelas; eram seus olhos as fontes de luz de todas as noites. Aliás, todas as noites são tuas. Não existe noite sem teu cheiro, sem teu colo, sem teu sabor, sem tua saliva. E se não há noite, os dias se tornam dormentes. Hoje está calor. Bem, não sentia calor há dez minutos atrás. Mas tua lembrança me aqueceu de forma tão arrebatadora que poderia até ouvir nossos sussurros e uivos e gritos e todas as declarações.
A barraca que vende sorvete estava aberta. Comprei um sorvete. Sorvete de chocolate, da cor da sua pele. Era do gosto da tua língua. Olhei para os lados, só a vendedora estava ali comigo. Não, não comigo; ela estava ali naquele lugar. Acho que eu era a única louca a degustar, saborear um sorvete em uma noite tão fria. E se o fazia era por causa do calor que me transbordava. Torcia para não encontrar ninguém conhecido. Não queria dar satisfações, nem responder perguntas. Toda pergunta feita em momentos inoportunos se torna idiota, pelo menos para mim. E aquele momento era teu.
Meia-noite. Mais uma noite. Uma noite a menos?
Volto para casa. Essa casa que é minha, mas que está muito mais cheia de ti que de mim mesma. Tomo um banho e tuas mãos continuam ali; a água escorre violentamente em meu corpo e as tuas mãos continuam ali. Coloco um perfume estratégico em um lugar quase invisível e penetrado somente por suas narinas. Todavia, não consigo sentir nenhum outro cheiro que não seja o teu. Volúpia. Esta palavra não saia da minha cabeça. O lençol da cama era vermelho. Não te encontrar ao meu lado era me arrancar o âmago dos prazeres, era não me sentir, era não mais desfalecer cansada em teus braços, era não mais cravar minhas unhas curtas em tuas costas.
Mas não consigo ficar parada. Não consigo suportar este oco eco que escuto ao gritar teu nome. Procuro-te em outros corpos. Quem sabe um dia eu te encontro ou me perco de vez.
Hoje resolvi tirar o dia para observar. Talvez tenha feito isso porque tudo que desejei hoje era ir para casa, tomar um longo banho frio sentada no chão do box, vestir uma roupa leve e sair. Sair, mais precisamente ir à praia. Todavia, não era um ir à praia que compartilhava a alegria efusiva do excesso de melanina nos corpos bem torneados (ou não). Era um ir à praia medicinal. Queria tomar sol para curar-me do escorbuto interior. Sim, era doença. Pensando bem, não era falta de vitamina d, mas de serotonina. Infelizmente nós, seres humanos, inventamos a pós-modernidade (ou será que ela inventou-se?!) que a cada segundo ofegante que passa sofre uma mutação que chega a ser um insulto à nossa sempre tão ínfima sanidade. Esta pós-utopia, ou seja lá qual nome utópico, possível e passível de dar à esta era, (re)surge a cada aurora como uma gripe ou uma dessas –ites que todo mundo tem, cujas origens são desconhecidas, mas vivemos inventado pomadinhas, tratamentos à base de oxigênio e nos entupimos de pípulas milagrosamente messiânicas que não multiplicam nem pães, nem peixes e muito menos transformam água em vinho para nossa embriagues dormente ou em xaropes para uma futura crise.
É, observei e ainda queria ir à praia só para me sentir viva. Era como se aquele vento massageasse meu corpo que estava tão dolorido naquele dia. As cólicas pareciam-me retorcer cada fibra. Talvez isso fosse causado pelos burburinhos escandalosos causados pela proximidade do Dia dos Namorados. Mais uma vez é a luta pela sobrevivência. Esses dias comercialmente comemorativos parecem até fila de comida para famigerados; é uma correria cambiante onde os cartões de crédito, usados euforicamente, parecem poder comprar uma felicidade noturna do dia 12 de Junho. Ora vejam, sempre fui fã dos beijos roubados no elevador ou até mesmo daqueles puxados pela cintura ou das conversas mais despretensiosas que culminam em declarações e em olhares inesquecíveis. Partindo disso, ah, para quem ama, todo dia é dia 12. Respirei, contei de um até mil e voltei a ler. Em tal livro o narrador-personagem falava de um outro tal livro em francês (ah, definitivamente eu preciso aprender francês) que mencionou algo sobre o amor: na primeira juventude, o amor é como um rio imenso que arrasta tudo em seu curso, e ao qual sentimos ser impossível resistir. Era isso. Resistir pra quê? Que viva-se o dia 12, cada um ao seu modo. Contudo, eu ainda prefiro os 12 dos 365.
O dia passou assim: silencioso e visceral. Queria escrever, mas sempre achava tudo uma grande besteira mesclada com uma timidez latente que de tão bem escondida chegava ser desconcertante. Suspirei e contei até trezentos e pedi um suco de maracujá. Ao beber a iguaria, lembrei-me do nome de tal fruta em inglês: passionfruit. Definitivamente não precisava lembrar-me disso. Sabe quando você se auto-aconselha um “Pelo amor de Deus, né?! Hoje não!” para logo em seguida se auto-responder “Ta certo. Ok!”. Paguei a conta e fui embora com gosto de passionfruit na boca. As pessoas ao redor traçavam planos de bares e finais de semana e trabalhos finais e seminários e churrascos. Era tanta gente falando e todas aquelas vozes me incomodavam; queria silêncio.
Para mim o silêncio era tão importante quanto água e ar. Silenciar-me era alimentar-me, acalentar-me. Precisava disso porque era no silêncio que deixava minha bagunça interna gritar. E não adianta, o grito é direito adquirido desde o momento em que um médico qualquer nos dá um tapinha para que choremos, uma forma de dar-nos as boas-vindas. Bagunça. Será que um dia arrumo isso? Sinceramente acho que não. E aquele silêncio gritava paradoxalmente com aqueles barulhos pós-modernos onomatopeicamente indescritíveis. Até que resolvi acolher a ausência e me fartar dela. Isso mesmo, minha tarde de observações acabara. Foi então que percebi que observei muito pouco. Meu analista faz falta e ele também. Voltei para casa e sentei nua no chão do banheiro. As cólicas haviam passado quando duas longas e demoradas lágrimas escorreram do meu rosto. Contei até mil. Já estou pronta para um amanhã: cortada, mas inteira.